terça-feira, 22 de dezembro de 2015

— Cinzentos

Ando crendo que meu cérebro sofre de claustrofobia. Ossos, assim tão superficiais, não estão me bastando como antes. O que faz a minha cabeça não se desmanchar parece alguma coisa pouca. As enxaquecas são terríveis nos dias de domingo. Já tomei quatro ou cinco remédios e não é só o ventilador paraplégico que está rodando agora. Entro em estado letárgico, assim como o relógio parado que está encravado no meu papel de parede faz semanas. E falando em relógio, lembro quando fui aprender a ler ponteiros. Errei tudo. Fiquei de castigo no quarto sem poder sair pra brincar. Era o meu último dia de férias. Eu queria brincar. O relógio analógico era a minha falta de vontade em compreender o tempo. Mas não entender como o sistema de morte à conta gotas funciona não fez com que aquele último dia de férias voltasse pra mim. Mas também, as horas não se perderam. A verdade é que a gente nunca perde tempo. Nunca. Você pode atrasar o seu relógio digital ou analógico, mas um segundo depois já vai ser um segundo depois, mesmo que seja um segundo a menos. A questão é que ninguém aproveita bem o tempo que tem. Todo mundo já nasceu e não tem mais nada o que fazer na Terra a não ser esperar. O mundo é, em suma, um enorme consultório médico. Aproveitar o tempo é ser feliz? Pois que seja. Felicidade é um negócio parecido com ar-condicionado, revistinhas fúteis ou pseudointelectuais e muito café fraco. Distração, é tudo distração. Se o universo fosse um consultório real, pelo menos você estaria ali esperando ser curado de algum mal, algum câncer, algum transtorno do pânico, alguma apendicite. Mas o relógio analógico é só uma analogia. Ninguém quer te atender. Ninguém me prendeu nessa espera infinita com o intuito de me fazer ser uma pessoa melhor. Rugas, arrependimentos, remorsos, raivas acumuladas durante anos, tédio… Não, definitivamente, envelhecer não te torna uma pessoa melhor. Só te faz virar uma pessoa. Só. Ninguém vive mais do que deveria viver. Nada, absolutamente nada é puro aprendizado. Sofrer no lugar do tempo é uma obrigação, porque ninguém quer “perder tempo”, “matar tempo”, “desperdiçar tempo”. Ninguém quer deixar o tempo pra trás… Ou melhor, a maioria das pessoas não quer. Eu, particularmente, não me incomodaria de deixar alguns segundos pra trás. Não me incomodaria de fechar algumas abas do meu navegador e chorar, chorar, chorar, até o peso da solidão diminuir. Mas a matemática da existência é tatuagem, e ninguém te pergunta se você aprendeu ou não a ler ponteiros. Com exceção do seu livro didático do jardim da infância. Eles querem que você descubra, desde cedo, que o cedo não existe. Sempre será tarde demais. Que o sol também cumpre horários e que a sua juventude está se pondo diante dos seus olhos. Antes essa tal claustrofobia fosse apenas uma pequena inflamação no meu modo alegre e otimista de enxergar o meu pedaço de continente. Bonito, muito bonito. Os aviões, a crença e a ciência fizeram do céu um lugar palpável. Os mortos fizeram da terra e do caixão as próprias habitações. Tudo nessa vida é tangível. As paredes do domingo se expandem por todo o universo. A claustrofobia do cérebro humano acontece quando você se revolta contra todas as distrações e se dá conta de que o relógio daquela tal sala de espera está parado assim como o relógio do meu papel de parede também está. Quando você percebe que ainda tem muito, muito tempo pela frente. E que no fim, você sempre vai acabar implorando pelo segundo a mais que você gastou implorando por um segundo a mais.

domingo, 6 de dezembro de 2015

Anatomia


É triste ver-se o homem por dentro:
tudo arrumado, cerrado, dobrado
como objetos no armário.

A alma, não.

É triste ver-se o mapa das veias,
e esse pequeno mar que faz trabalhar seus rios
como por obscuras aldeias
indo e vindo, a carregar vida, estranhos escravos.

Mas a alma?

É triste ver-se a elétrica floresta
dos nervos: para estrelas de olhos e lágrimas,
para a inquieta brisa da voz,
para esses ninhos contorcidos do pensamento.

E a alma?

É triste ver-se que de repente se imobiliza
esse sistema de enigmas,
de inexplicado exercício,
antes de termos encontrado a alma.

Pela alma choramos.
Procuramos a alma.
Queríamos alma.
Agosto, 1959 

Cecília Meireles

Victor Hagani - Nascemos pra Florescer


Vivemos pra morrer
Somos pequenos pra crescer
Amanhecemos pra anoitecer
E amamos pra sofrer

Por que sorrimos pro nada?
Por que corremos do tempo?
Por que ver sem enxergar
a beleza que temos por dentro? [...]